sexta-feira, 23 de setembro de 2011

“Nevermind”, o último clássico do rock


Por CRISTIANO VITECK

Ao voltar para Deus com passo hesitante,
Com as canções meio escritas e a obra inconclusa,
Que trilhas teus pés feridos pisaram,
Que morros de paz ou dor escalaram?
Que Deus tenha sorrido, pego tua mão,
E dito: “Pobre bufão, louco de paixão!”
O livro da vida é duro de entender:
Por que não continuaste na escola?


- Charles Hanson Towne, no poema “Sobre um Suicida”, de 1919.


Neste sábado, 24 de setembro, “Nevermind” do Nirvana completa 20 anos de lançamento com o indiscutível mérito de ser, desde então, o último grande disco de rock. Há dez anos, “Is This it” dos Strokes talvez até se insinuou como um clássico, mas o tempo se encarregou de minimizar a importância do álbum daqueles moleques de Nova York. Eles fizeram uma grande estreia, mas longe de causar uma revolução. Ao contrário do Nirvana, que estreou sem estardalhaço com “Bleach” em 1989 e mudou a história da música pop dois anos depois com “Nevermind”, disco que subverteu para sempre a até então intocável divisão entre o underground e o mainstream.

Não havia dúvidas que 2011 seria um ano em que a gente ia ouvir falar muito sobre o Nirvana. Dave Grohl já havia dado a dica quando anunciou que Krist Novoselic participaria do novo disco do Foo Fighters, “Wasting Light”, lançado em abril e produzido por Butch Vig, o mesmo que assinou a produção de Nevermind. Se isso foi homenagem ou oportunismo de Dave Grohl, fica a critério de cada um decidir. Depois, é claro, as matérias da imprensa ao redor do mundo. Desde o início do ano elas já começaram a inflar o oba-oba em torno do marco dos 20 anos, que virou fuzuê de vez quando foi anunciado o mega-pacote comemorativo, que inclui na sua embalagem mais gorducha um livro com fotos raras e inéditas, quatro CDs que contêm o “Nevermind” original remixado, outro “Nevermind” com uma mixagem alternativa (e mais pesada) jamais lançada, lados B, demos e a íntegra do show que o Nirvana realizou em Seattle em 31 de outubro de 1991, capturando o exato momento em que o Nirvana estava em ascensão meteórica rumo ao estrelato mundial. Mesmo show que também é lançado agora em DVD e poderá ser comprado separadamente. Enfim, um super lançamento, que acompanha ainda edições caprichadas em vinil quádruplo ou uma versão mais modesta em CD duplo.

Com previsão de chegar às lojas na próxima terça-feira (27), desde quarta-feira (21) os áudios dos quatro CDs do super box já escorriam pelos blogs ao redor do mundo. E ao por os ouvidos no material, para decepção dos fãs, fica evidente que é quase tudo praticamente mais do mesmo. De interessante mesmo é o show de 31 de outubro de 1991, embora o áudio, em boa qualidade, já fosse bastante conhecido de um disco pirata de nome “Trick or Treat”. Luxo mesmo, então, só o DVD, que sai com o título “Live at Paramount” e do qual algumas partes já foram vistas no clip de “Lithium” ou no documentário “Live Tonight! Sold Out!!”. Ah, o mesmo show também já havia sido dissecado pelo jornalista André Barcinski no livro Barulho, de 1992. Sim, o filho da mãe sortudo esteve lá, gostou muito do que viu e decretou na época:

“O legal do Nirvana é que eles ainda não têm uma história. Ela está sendo contada agora. Daqui uns dez ou vinte anos, a gente vai poder falar daquela ‘loucura do final de 91’".

O Nirvana escreveu rapidamente sua história, encerrada abruptamente quando Kurt Cobain disparou um tiro contra a própria cabeça. E com tudo o que já foi escrito, visto e falado desde então, é meio chato, redundante ou mesmo difícil escrever algo de novo sobre o Nirvana. Mas num exercício de paciência, seu e meu, vamos recapitular um pouco a história.

Nevermind


A banda nasceu oficialmente no dia 19 de março de 1988. Embora Kurt Cobain e o baixista Krist Novoselic já tocassem juntos há algum tempo, foi apenas alguns meses antes de lançar o primeiro single que eles batizaram a banda com o nome definitivo. O Nirvana estreou com um álbum em 1989. “Bleach” não teve nenhuma grande repercussão, embora tenha credenciado a banda para circular livremente entre a turma alternativa. O disco também rendeu a primeira turnê européia do Nirvana que passou por pequenos clubes junto com o TAD, nome de peso maior dentro da cena rock de Seattle.

O ano de 1990 foi fundamental para a carreira da banda. Descontentes com o rendimento do baterista, a banda deu adeus a Chad Channing e chamou para o seu lugar Dave Grohl. Foi o início da formação clássica do Nirvana. Kurt também não estava satisfeito com a gravadora Sub Pop e passou a enviar dezenas de fitas demos a vários selos. Em abril de 1991, a isca foi mordida pela DGC, um braço da gigante Geffen Records, que também havia contratado algum tempo antes o Sonic Youth, um dos maiores ídolos de Kurt Cobain. A princípio a DGC não se entusiasmou com o Nirvana e apostava poucas fichas na banda.

Quando a gravadora DGC contratou o Nirvana por 290 mil dólares, valor relativamente baixo para os números da indústria musical, a gravadora não tinha planos muito ambiciosos para a banda. Num primeiro momento, a Geffen esperava vender 50 mil discos e, com o passar do tempo e com um pouco de sorte, chegassem a 500 mil unidades - se alguém na época dissesse que 20 anos depois o álbum teria vendido mais de 30 milhões de cópias seria considerado maluco!

Em maio e junho de 1991m Kurt Cobain e seu colegas gravaram o disco “Nevermind”. O orçamento inicial para a gravação era de 65 mil dólares, mas até ser finalizado o custo subiu para 120 mil dólares, valor infinitamente maior do que os 600 dólares gastos na produção de “Bleach”. O nome “Nevermind” surgiu de uma conversa entre Kurt e o baixista Krist Novoselic. Numa tradução livre, o título do disco é algo como “Deixa pra lá” ou “esqueça isso”, o que Kurt entendia ser uma metáfora para o seu estilo de vida. “Nevermind” também remetia a “Smells Like Teen Spirit”, a música que estava se tornando a mais falada durante as gravações, embora inicialmente a banda achasse que o maior sucesso seria a faixa “Lithium”.

O Nirvana dedicou um bom tempo para a produção da capa. Kurt teve a ideia de colocar um bebê (Spencer Elden, hoje com 20 anos, na época fotografado peladinho por Kirk Weddle) nadando atrás de uma nota de um dólar. Era uma piada dos músicos com relação à própria banda, que ao abandonar o selo independente Sub Pop teria se vendido ou estaria nadando atrás do dinheiro fácil das grandes gravadoras. Ao mesmo tempo, a capa geraria controvérsia ao mostrar o bebê com o pauzinho de fora.

No dia 24 de setembro de 1991 “Nevermind” chegou às lojas. Em uma semana a prensagem inicial de 50 mil cópias havia se esgotado. Um mês depois, o álbum chegou à marca das 500 mil cópias comercializadas, causando um verdadeiro furacão dentro da DGC, que passou a dedicar mais atenção ao grupo. Ainda em outubro, a MTV incluiu o clipe de “Smells Like Teen Spirit” em sua programação normal. As boas vendas continuaram e em 11 de janeiro de 1992 “Nevermind” chegou ao primeiro lugar da parada da Billboard, ultrapassando “Dangerous”, do astro pop Michael Jackson. O Nirvana havia chegado ao topo.

Junto com Nirvana, toda a cena musical de Seattle cresceu junto. Nomes como Pearl Jam, Soundgarden, Alice in Chains tiveram um impulso imenso em suas carreiras. Outras bandas como TAD, Mudhoney ou Love Battery, que estariam condenadas ao eterno anonimato se não foco o empurrão de “Nevermind”, certamente estariam condenadas para sempre ao anonimato. A força do segundo álbum do Nirvana, enquanto propulsora de um fenômeno cultural, ainda hoje é difícil de dimensionar ou explicar. A toda aquela ebulição deram o nome de grunge, vendido como a coisa mais cool do começo dos anos 90 para logo depois ser descartado como mais um simples capricho desgastado da indústria fonográfica quando perdeu o gosto de novidade.

Lado Girl/Lado Boy

Grande parte de “Nevermind” é fruto de um coração partido. O biógrafo de Kurt Cobain, Charles Cross, no livro “Mais Pesado Que o Céu” afirma que quatro músicas presentes no disco foram escritas pelo líder do Nirvana após o rompimento do relacionamento de cerca de seis meses entre ele e Tobi Vail, integrante da banda Bikini Kill. São elas: “Smells Like Teen Spirit”, “Drain You”, “Lounge Act”, “Lithium”. Além dessas, também “Aneurysm”, que foi lançado como um lado B e depois apareceu também na coletânea “Incesticide”.

Kurt Cobain, segundo Cross, ficou com uma dor de cotovelo tão intensa pelo fim do namoro com Tobi Vail que, prestes a iniciar a gravação do que serm “Nevermind” ponderou por um tempo em dividir o disco em dois temas. O lado Girl – só com as canções traumaticamente inspiradas por sua ex-namorada – e lado Boy, com canções mais autobiográficas de Kurt, onde poderiam entrar faixas como “Sliver” e “Sappy”. O líder do grupo desistiu da ideia cafona, mas as canções sobre Tobi Vail permaneceram espalhadas por “Nevermind”. Como é comum entre os grandes artistas, Kurt Cobain transformou seu sofrimento no melhor de sua arte.

Porém, “o ódio que ele tinha pelos outros era leve comparado à violência que traçava contra si mesmo”, escreveu Charles Cross. Por um capricho do destino, a mesma dor emocional que inspirava Kurt Cobain a crescer artísticamente, abrindo-o para composições mais pessoais e dotadas de uma agressividade genuína, também escancararam as portas rumo à ruína total do músico. Sem Tobi, o líder do Nirvana encontrou consolo na heroína. Na época do lançamento de “Nevermind”, Kurt Cobain já era um junkie de primeira grandeza e nem o sucesso, o casamento com Courtney Love e o nascimento da filha Frances Bean serviram de consolo para ele. Embora jovem, rico e com uma nova família, aos vinte e poucos anos Kurt já se sentia “entediado e velho”, como cantou em “Serve the Servants”, música que abre o disco derradeiro “In Utero” e onde Kurt relaciona todos os motivos para o suicídio que iria cometer em abril de 1994.

O filhote estropiado da ninhada

O escritor norte-americano J. D. Salinger (1919-2010) na sua novela “Seymor, uma apresentação” (de 1959), escreveu:

“Parece-me indiscutível que muita gente no mundo todo, malgrado as diferenças de idade, cultura e dotes naturais, reage com ímpeto especial, em certos casos até mesmo febril, aos artistas e poetas que, além da reputação de produzirem arte de alta qualidade, têm algo extravagantemente errado como indivíduos: um defeito espetacular de caráter ou de comportamento cívico, uma desgraça ou vício supostamente românticos – extremo egotismo, infidelidade conjugal, surdez, cegueira, sede insaciável, tosse mortal, fraqueza por prostitutas, certa parcialidade em favor do adultério ou do incesto em larga escala, queda comprovada ou não pelo ópio ou sodomia etc. etc. Deus tenha piedade dessas solitárias criaturas. Se o suicídio não encabeça o rol das constrangedoras enfermidades dos homens criativos, é impossível negar que o poeta ou artista suicida sempre mereceu uma grande dose de ávida atenção, com frequência por razões meramente sentimentais, como se ele fosse (para colocar a coisa de maneira muito mais horrível do que realmente desejo) o filhote estropiado da ninhada”.

Uma descrição que cai como uma luva para Kurt Cobain, que na carta de suicídio descreveu a si mesmo como “um bebê errático e mal-humorado”. Somente alguém que tinha algo “extravagantemente errado como indivíduo”, um legítimo “filhote estropiado da ninhada” poderia conceber “Nevermind”. O disco em si é um punhado de canções com letras formadas por colagens autobiográficas de uma infância triste, uma adolescência turbulenta, um coração dilacerado pela rejeição amorosa e uma vida adulta predestinada à autodestruição. Tudo isso potencializado pela força avassaladora de uma guitarra, um baixo, uma bateria tocados com fúria autêntica por sujeitos que até aquele momento da vida não passavam de uns completos fodidos sem nada a perder.

É na dor, na raiva e na sinceridade contidas nos 42 minutos entre “Smells Like Teen Spirit” e “Something in the Way” que o disco se impõe como algo muito maior do que um punhado de canções pop. Mas também vai além e cada um dos milhões de fãs ao redor do mundo tem seus motivos para fazer deste um álbum tão especial em suas vidas. Duas décadas depois, o disco continua carregado de significados, mesmo para as gerações que nasceram depois de ele ter sido lançado e hoje insistem em ouvi-lo incansavelmente. Isso, aliado a repercussão das comemorações do 20º aniversário, mostra que “Nevermind” definitivamente se estabeleceu como um marco da cultura da rebeldia, expressivo enquanto arte e misterioso o bastante enquanto fenômeno de massa para nos fazer correr atrás de respostas para tentar entender, afinal, o que foi toda aquela "loucura do final de 91"?

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