quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

ENTREVISTA: Lobão


Por Gustavo Ranieri

Repleto de histórias peculiares, sucesso e mais de uma centena de processos, o cantor e compositor lança sua autobiografia. E que ninguém duvide. Lobão não conhece a expressão “pé no freio”. “Não parei de acelerar até agora. E nem pretendo”, dispara. Também não hesita em deixar claro que continua o mesmo: é egocêntrico, ácido, provocador, mas também sensível e tímido. Acima de qualquer coisa, leal a boa parte dos ideais. Inclusive os que cultiva desde quando ainda era o adolescente carioca João Luíz Woerdenbag Filho.

A diferença é que agora, com 53 anos recém-completados, 132 processos na bagagem, algumas prisões por envolvimento com drogas e milhares de discos vendidos, o cantor resolveu, como se diz no jargão popular, fechar a conta e passar a régua do que chama de “primeira etapa da vida”. “Tenho plena consciência de que a parte relevante do meu trabalho ainda não começou a ser escrita”, diz convicto.

É por isso que surge tão certeiro em 50 anos a mil, a autobiografia escrita em parceria com o jornalista Claudio Tognolli, que acaba de chegar ao mercado. São 873 páginas para revelar o perfil do homem que, sem medo algum, largou a casa dos pais, aos 17 anos, para se tornar músico.

Trajetória que soma ao longo de 36 anos a passagem como baterista da banda Vímana, ao lado de Lulu Santos e Ritchie, a criação da Blitz com Evandro Mesquita, embora, por uma série de divergências, tenha abandonado o posto antes do sucesso, e a carreira solo que totaliza 14 álbuns – o último, Acústico MTV, foi lançado em 2007.

Lobão é tudo o que os holofotes evidenciam. E é também a figura que se considera metódica – basta ver que acorda às 5h30 todos os dias – e insuportavelmente bem-humorada. A mesma que nesta entrevista fala sobre o lançamento da publicação, música, televisão e maturidade.

Em que momento nasceu a vontade de escrever a biografia 50 anos a mil?
Foi quando saí do Rio e vim morar em São Paulo, em 2008. Senti naquele momento que era o maior rito de passagem que já havia atravessado.

Isso em que sentido?
Aqui é uma cidade que o impulsiona pelo espírito empreendedor. Fora que gosto de me reunir com meus amigos e vim para cá justamente para poder ter realmente essa vida “afetiva”. Sair para comer juntos, tomar umas, fazer um som... lá no Rio, isso era impossível.

Mas, desde o início, a ideia era ser uma autobiografia ou esse foi o pedido da editora?
Recebi, primeiramente, convite de outra editora para fazer o que eu quisesse. Pensei em livro de crônicas, de poesias, um romance. Mas depois recebi outro convite. Desta vez, da Nova Fronteira, que também deu carta branca. No primeiro momento, a ideia foi escrever sobre o meu case na prisão e fazer algo tipo “Vida bandida, o livro”. Mas foi o Claudio Tognolli que me sugeriu escrever a minha biografa inteira.

50 anos a mil é um título muito sugestivo. É assim que você sente sua vida?
Claro. Não tirei o pé do acelerador até agora, nem pretendo tirar. E essa velocidade é em virtude da minha intensa vida interior e o que proponho a mim mesmo vivenciar. O resultado disso são aventuras das mais variadas e intensas.

Uma Vida louca vida, como você sugere na música...
Bem, sei que tenho uma história e que sou uma pessoa peculiar. Mas acho que se trata de uma trajetória de cura e crescimento. Agora, antes de qualquer coisa, me considero tímido, sedentário e faço tudo para produzir uma densa cortina de fumaça para impedir que descubram quem realmente sou. Até porque devo ser daqueles caras que se mostram exteriormente exatamente o contrário daquilo que são. E isso não deixa de requerer certa habilidade artística. Aliás, todo cara que mexe com arte tem uma performance meio alegórica na vida.

Uma das críticas recorrentes no caso de autobiografias é o fato de que muitos autores omitem fatos de sua própria história. Podemos dizer que você é 100% fiel ao que está em seu livro ou escondeu alguns detalhes?
Vejo a coisa por outro viés. Produzi um belo livro, contei uma grande história, mas sei perfeitamente que se trata de algo absolutamente arbitrário. E isso não me importa se a história é bem escrita. E acredito ser esse o caso. Até porque acho impossível exigir de você escrever uma autobiografia sem impor suas próprias edições.

E como foi que pintou a parceria com o jornalista Claudio Tognolli?
Por meio de uma conversa com meu amigo Marcelo Tas. Contei para ele sobre o livro que tinha para escrever e ele me sugeriu o Tognolli, que, aliás, já conhecia de outras jornadas. Acabamos esse projeto, que levou um ano e meio, já grandes amigos.

Houve preocupação de seguir uma ordem cronológica na biografa ou os fatos aparecem de acordo com o que você considera mais importante?
Eu não tinha a menor ideia de qual seria a ordem. No fim, saiu um formato linear de narrativa. Digo que acabei fazendo uma psicografa de mim mesmo.

E essa psicografa foi dolorosa em algum momento?
Rever sua história por meio de seu próprio punho é, no mínimo, um psicodrama. O que mais me surpreendeu foi saber como eu mesmo me tratei nesse processo. Depois, escrever minha história se tornou algo delicioso, percebi que tenho uma história riquíssima. E posso dizer que acabei o livro mais amoroso com o mundo.

Você acabou de completar 53 anos. Quem é o Lobão de 30 anos atrás e o de agora?
Sou aquele que veio salvar o eu menino, o garoto que gritava por socorro por mim mesmo olhando o homem crescido lá no futuro (que é agora). Escrever esse livro foi entrar na máquina do tempo e resgatar aquele que tanto orava por mim: eu mesmo lá atrás.

E o que esse “garoto” já pressentia do seu futuro que o fazia gritar por socorro?
Me via como uma pessoa que não conseguiria sobreviver àquele tipo de educação que me impunham. Era um grito de desespero, de solidão tamanha que só devo ter achado uma versão minha no futuro, que, por acaso, se dispusesse a me ajudar. Tinha certeza de que não havia outra opção. Mas parece que acertei.

Mas você tem consciência do que mudou e do que ficou igual em vocês ao longo desses anos?
Sei lá. Desde que me entendo por gente, não consigo fazer uma distinção clara. Mas posso dizer que antes era mais desprotegido. No sentido de viver em um país hostil ao que produzo. Só percebi haver realmente uma mudança mais relevante nesse quadro quando, como já disse, cheguei de vez a São Paulo.

Aliás, você acredita em maturidade? Considera-se um homem maduro?
Acredito que sou um ser obsessivo e apaixonado pelo que faz. Hoje, me sinto muito melhor do que sempre fui, graças a essa feliz característica. Meu vigor está intacto, minha capacidade se desenvolveu e continua em pleno desenvolvimento.

Também não se incomoda com a idade nem com o passar do tempo?
Acho que estou melhor do que nunca. E tenho plena consciência de que a parte relevante do meu trabalho ainda não começou a ser escrita. Vim para sacudir os alicerces e nem comecei a festa. Pode crer!

O que seria essa nova etapa de relevância na sua vida?
Já existe essa direção ou você está em processo de descoberta? Bom. Isso é para mais tarde. Agora, estou mesmo em ritmo de espera para uma série de lançamentos importantes.

Para a geração dos anos 1970 e 1980, você é um dos mais renomados artistas do país. Mas e para a geração atual: sua imagem não está na cabeça deles associada mais à televisão, como apresentador da MTV?
Não sei se isso é verdade. Tem de perceber que já estou no cenário de música independente há vários anos e meu público é de gente muito jovem. Mesmo porque não permito adulto contemporâneo, tipo nostálgico, se criar na minha área. Isso é público lixo, meu negócio é outro.

Afinal, a história de ser apresentador começou como uma brincadeira ou existia uma ideia planejada de se consolidar na TV?
Ser apresentador é uma linda brincadeira. E me reinvento sempre que tentam me exterminar. Aliás, isso fica bem claro agora no livro.

Você foi um dos pioneiros a lançar um álbum de modo independente, distribuído para todo o país em bancas de jornal. O que precisa mudar ainda na indústria fonográfica?
As rádios têm de parar com essa malandragem do jabá e de impor as mixagens para as gravadoras. Porque, nessas, eles sempre eliminam as guitarras. Enquanto não houver participação efetiva das rádios em tocar bandas novas, vamos ficar nas mãos desses oligofrênicos produzindo tatibitate teen.

E a pirataria, que vira e mexe volta à tona nas discussões? É possível combatê-la?
Olha, ergueria as mãos para o céu se a pirataria tivesse essa importância na merda em que nos encontramos. O buraco é mais embaixo. Temos de mudar a maneira de pensar das gravadoras, substituir a grande maioria dos executivos, que são meros diletantes, e chamar as rádios na chincha. O resto é puro detalhe.

Como você observa a crítica de que a música brasileira teria empobrecido em criatividade nas últimas décadas?
A música, assim como os políticos eleitos, é de nossa exclusiva responsabilidade. Não adianta reclamar dos outros. Somos essa coisa lastimável, enquanto cultura, por nossa inteira obra e graça. Tipo do caso que não rola uma inter-relação com o outro.

O que você está ouvindo nos últimos tempos?
Principalmente The Wombats, The Kills, The Dead Weather, Them Crooked Vultures e Radiohead.

E lendo?
Nada. Estou em pleno recesso intelectual

Você já causou muito alvoroço ao detonar em entrevista, por exemplo, Chico Buarque, Tom Jobim e João Gilberto. Você se arrepende de alguma dessas declarações?
Não. Nada do que falo é gratuito. Só com o João fui um tanto grosso e peço perdão a ele no livro.

Mas falar tudo o que tem vontade gerou muitos problemas na justiça e inimizades, não?
Já fui muito caçado. Foram 132 processos em todo o Brasil. Agora, não tenho o menor interesse em saber se essas atitudes me deram ou não inimizades. Elas, antes de qualquer coisa, sempre foram muito precisas. Nada pessoal.

E dessa centena de processos, quantos você ganhou ou perdeu?
Todos foram prescritos, porque eram absolutamente absurdos. No livro, o Tognolli elucida tudo com documentos, sentenças, entrevistas. Mas adianto que é uma caçada insana. Vendo hoje, dá até vontade de rir. Eu era tratado como um criminoso, um mal social em todo o território nacional.

Por tudo isso, se formou ao seu redor o estereótipo de “porra-louca”. Incomoda esse rótulo?
O que digo é que minha história sempre prevalecerá. Nunca tive a menor dúvida quanto a isso.

Mas como você lida com a exposição na mídia? Você é conhecido por ter um contato um tanto conturbado com a imprensa...
Não suporto me ver nas manchetes, seja com os altos ou os baixos da minha carreira. Há uns dez anos que nunca leio mais nada a meu respeito. Só me manifesto quando rola algum exagero. Sou tímido, uma alma delicada. Tenho horror à exposição pública e só o faço por minha atividade ser desafortunadamente pública.

Aliás, como é o Lobão fora dessa exposição pública? Você gosta de fazer coisas comuns, como ir ao supermercado ou ao shopping?
Sim. Sou uma pessoa extremamente corriqueira. Quase até um pedestre.

E o Lobão marido [ele é casado há 20 anos com Regina Lopes, sua empresária]. É do tipo carinhoso, acredita no “até que a morte nos separe”?
Bom, espero que sim. Sempre quis viver com minha amada até além do futuro. E assim será.

Por falar em além do futuro, você é espiritualista? Segue alguma religião?
Não, mas acho muito pitoresco. Desde criança, tenho fascinação por mártires, crucificações, mas, assim como Cioran [escritor e filósofo romeno do século 20], acho que a religião é uma forma de obter o enlevo da alma através do mal-estar. É como assistir a um show de MPB tradicional. Você sai se achando mais inteligente, a despeito das duas horas de merda que você gastou ouvindo aquela porcaria culturalista.

Mas e em Deus, você acredita?
Acho justo que exista uma entidade superior, muito embora ela nunca nos tenha brindado com sua real presença. Acho deus na sociedade uma coisa retrógada, sombria e, por que não, pusilânime. Enquanto o diabo... bem, o diabo é só deus de folga, né? Tá tudo dominado.

FONTE:
http://www.revistadacultura.com.br:8090/revista/rc41/index2.asp?page=entrevista

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